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Uma
"Interpretação Memorável"
Celso
Rennó Lima
Otema da "interpretação
memorável" tratado, em Paris, no âmbito das Conferências
das noites de quarta-feira da Seção Clínica, foi levado
ao Brasil por Serge Cottet em sua conferência: "O passe na entrada"
na EBP-RJ, em agosto de 1995(1) .
A expressão "interpretação memorável",
criada por Jacques-Alain Miller para a Seção Clínica,
chamou minha atenção quando Serge Cottet nos disse de uma
preocupação com as "poucas ilustrações
concretas" de interpretações que poderíamos chamar
de memoráveis nos relatos de análises ao cartel do passe,
acrescentando que talvez exista "uma dificuldade estrutural para elucidar
essa passagem para o sujeito (...) pois o momento dessa mutação
é difícil de apreender..." (2)
É a partir deste ponto que me ponho a trabalho para desenvolver
uma hipótese dizendo que esta dificuldade se deve ao fato de que
uma interpretação só se torna passível de ser
memorável se ela for capaz de promover uma transmutação
de registro, ou seja, traduzir "Traços de percepção
(Wahrnemungszeichen )" em "Traços duradouros (Dauerspuren
)" ou "Traços de memórias (Erinnerungspuren
)". Estando fazendo referência ao esquema do aparelho psíquico
proposto por Freud na Carta 52 de sua correspondência a Fliess:(3).
permito-me introduzir, a partir do desenvolvimento de Lacan, a incidência
do traço unário (Einziger Zug ) entre as camadas
dos "Traços de percepção", (Wahrnemungszeichen
) e o "Inconsciente" (Unbewusst ), na medida em que é
a presença deste traço (Zug), após o assentimento
primordial (Bejahung ), o que vai possibilitar a estruturação
do inconsciente (Unbewusst ) com o seu limite: o "Unbegriff
" - conceito criado por Lacan para nos dizer do UM do inconsciente.
(4).
Como já convocamos a "Carta 52", continuaremos com sua
referência para dizer que a interpretação vai se mostrar
eficaz e permanecer como memorável quando ela for capaz de promover
o "despertar de um novo desprazer"(der Erweckung (5)neuerlich
Unlust (6).) ali onde "uma
memória se comporta como um evento corriqueiro" (Die
Erinnerung benimmt sich dann wie etwas
Aktuelles ) com a intenção de promover uma inibição
à liberação de desprazer (Unlust ) (7)..
Minha proposta se sustenta em uma pesquisa(8).
no texto freudiano, onde pude constatar que, ao contrário do que
observamos nas traduções (português, inglês,
espanhol ou francês) são utilizadas três palavras distintas
para a palavra traço que, longe de ser apenas uma questão
de retórica, vão nos apontar recortes conceituais diferentes,
propiciando a uma formalização do que penso ser uma "interpretação
memorável"
Zeichen - Freud utiliza este significante na Carta 52 quando
nos diz: "o essencialmente novo em minha teoria é a afirmação
de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias
formas, em diferentes maneiras de traços (Zeichen = indícios,
insígnias)."
Ele aí está nos apresentando "Traços de percepção"
(Wahrnemungszeichen) , o primeiro registro (Niederschrift
) "absolutamente incapaz de se tornar consciente, e organizado de
acordo com associações por simultaneidade (Gleichzeitigkeitsassoziation
)"(9). Estes traços "nós
podemos, nos diz Lacan, dar-lhes imediatamente seu nome verdadeiro de significantes
."(10).
Zug - Este significante é utilizado por Freud em poucas
ocasiões: "Uma criança é batida" e "Psicologia
das massas - parte VII", onde Lacan vai buscar o conceito de traço
unário (Einziger Zug) . Trata-se, de um traço,
de um puxão, de uma espécie de sulco inaugural que tem como
consequência lógica a Bejahung primordial.
Spur - Esta é a palavra alemã para traço
que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na Carta 52 vamos vê-lo
utilizar Spur quando diz que se na camada denominada "Percepção"
(Wahrnemung) nenhum traço (k ein Spur
) do que acontece permanece, isto só será possível
quando do segundo registro (Niederschrift ): "Inconsciente"
(Unbewusst) , onde "traços do inconsciente (Unbewusstspuren
) são algo equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen
), também inacessíveis à consciência"(11).
Acrescento que é a incidência do traço unário
(Einzeger Zug ) o que promove a reorganização
das "associações por simultâneidade" em lembranças
conceituais", a partir mesmo da instalação do "UM",
da hiância, como causa .
Freud é bastante claro, portanto, em dizer que é somente
quando o traço (Spur) , está registrado, é
que vai ser possível o próximo passo: "a transcrição
(Umschrift ), ligada à representação de palavra"(12).
Ora, uma intervenção que se sustentar no deslizamento do
sentido permanecerá apenas como traços de percepção
(Wahrnemungszeichen) pois, sendo apenas uma indicação,
insígnia de um Outro que se apresenta como ideal [I(a)], vai impedir
a que uma marca (Zug ) possa produzir o "despertar um desprazer
particular liberando um novo desprazer que, então, não pode
mais ser inibido"(13) . Este
"despertar" só será possível pela acão
de um corte, uma separação que, apontando para a hiância
que o traço (Zug ) deixou ao ser assimilado, vai abrir o
caminho (bahnung ) para que um traço de memória (Erinnerungsspur
) possa se apresentar à transcrição (Umschrift
) ligado-se á representação de palavra (Wortsvorstellung
). Assim será possível à interpretação
"produzir ondas", como nos lembrou S. Cottet em suas conferências
no Rio de Janeiro.
Em outras palavras, podemos dizer que é a partir deste deste sulco
(Zug ) produzido pelo corte que o esvaziamento do sentido vai ocorrer,
apontando a "separação entre S1 e S2 que se inscreve
sobre a linha inferior do discurso analítico, como nos esclarece
J. A. Miller(14), possibilitando
uma retificação no trajeto da satisfação pulsional,
ao desviar o vetor do sentido, para a causa de desejo.
Esta é a intervenção de um analista que pode propiciar
a um sujeito dar um passo a mais e confirmar a sua decisão pela
análise, conforme o fragmento clínico que vou apresentar
em seguida.
A confirmação desta decisão, acredito, não
se faz pela via do saber, mas sim por um consentimento com a experiência
do inconsciente que este corte instala. Quando me refiro a consentimento,
tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - A Ética
da Psicanálise: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do
pai da horda primitiva, "se instaura um consentimento inaugural que
é um tempo essencial na instituição da lei. Quanto
à esta lei, a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato
do pai, de identificá-la à ambivalência que então
funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno
do amor após efetuado o ato." (15)
Agora a clínica:
Carlos procura análise pela terceira vez. Nas duas vezes anteriores
alegou ter feito "final de análise!" o que, de alguma
forma, foi atestado pelos analistas. No entanto, seus sintomas persistiam:
mais uma vez se encontrava envolvido em dívidas e conflitos familiares.
Sendo um trabalhador que podemos qualificar de compulsivo, Carlos tem passado
sua vida pagando as dívidas que faz além de, constantemente,
pagar dívidas de seus pais. Isto não só na área
financeira pois, até mesmo seu sucesso profissional foi uma forma
de "resgatar o nome do pai" que, como explicitou certa vez, sempre
fracassou em sua vida profissional.
Durante um bom tempo veio às sessões regularmente e trabalhou
bastante. Acredito que, como das outras vezes, foi gradativamente alimentando
seus sintomas de sentido, a partir mesmo de seu saber e perspicácia.
Com isto, eles foram sendo apaziguados, uma 'melhora' logo surgiu e, com
ela, idéias de concluir mais esta análise. Mas uma pequena
dívida bancária permanecia ali, sempre presente. Ao final
de uma sessão, quando mais uma vez Carlos disse que não tinha
o dinheiro para pagar, o analista pontuou esses 'esquecimentos' dizendo
que eles estavam se tornando um ritual.
Esta intervenção marcou um primeiro ponto de virada na história
desta análise e o sintoma de Carlos não tardou a se manifestar
novamente, reforçado, como nos diz Freud. Após fazer algumas
contas, Carlos chegou a conclusão que para saldar sua dívida
seria necessário cortar despesas aqui e ali e ter os recibos de
sua análise. A esta demanda o analista respondeu com um simples:
"aqui não há negociação".
J. A. Miller, em seu curso "Silet", nos lembra que uma intervenção
preciosa do analista (é) seu eventual 'sem acordo' (pas d'accord
)(16), pois no inconsciente não
há a menor possibilidade de uma harmonia, muito menos de uma negociação,
pois falta o significante que poderia estabelecer a proporção
sexual.
Assim, esta interpretação estabeleceu, definitivamente, a
reviravolta do curso desta análise. O vazio que Carlos encontrou,
ali onde esperava a perpetuação de uma sequência plena
de sentido, trouxe o "despertar de um desprazer" que estava apaziguado
no "Automaton" de significantes regido por sua crença
em ser "tão honesto".
Em outras palavras, a partir do traço (Zug ) que se re-inscreveu,
o que estava inibido sob as insígnias (Zeichen) do Outro
foi escutado e pode promover a transmutação de memórias
conceptuais (begriffserinnerungen ) em representação
de palavras (wortvorstellungen ) dando a Carlos condições
de efetuar construções em suas sessões(17).
Após algum tempo, um sonho veio testemunhar disto: Carlos sonhou
que voltava de um lugar onde vivenciou uma situação que descreveu
como muito prazerosa. Apesar de não conseguir identificá-la,
acreditava ser uma situação sexual. Ao retornar para sua
casa se deparou com dois familiares seus que, muito tristes e num tom acusatório,
disseram: "Ela morreu!"
">Para concluir posso dizer-lhes que as duas intervenções
do analista, aqui descritas, promoveram uma retificação da
satisfação exatamente onde ela deve ser feita: ao nível
da pulsão(18). . O sonho de
Carlos nos diz do trajeto em torno de um vazio que se tornou presente a
partir da separação promovida pela interpretação.
Este vazio, onde durante toda a sua vida Carlos insistiu em colocar uma
mulher - mais exatamente, o olhar de uma mulher -, marca agora o que poderíamos
chamar de lugar da verdade. Este lugar que delimita, no discurso do analista,
um espaço onde um saber pode ser reinventado: "Descobri outro
dia que, por mais que eu trabalhe, não poderei nunca dar à
minha mãe o pedaço que faltou a meu pai", disse Carlos
recentemente, se referindo ao "não" com o qual respondeu
às novas demandas de sua mãe para quitar suas dívidas.
Hoje, passado um tempo, posso dizer que Carlos fez um longo percurso até
que pudesse fazer esta passagem de um saber sobre o inconsciente para consentir
com a experiência do inconsciente.
A operação da interpretação, separando S1 do
S2, ou seja estabelecendo o avesso da proposta do inconsciente, trouxe
à luz o intervalo e a possibilidade de uma construção.
Com isto surgiu a esperança de poder ir mais além do sentido,
mais além das insígnias, ou traços (Zeichen
) do Outro que só fazem produzir um certo conforto. Mais que isso,
a incidência da interpretação à maneira de um
estilo que sulca a tábua de cera ao imprimir a letra, reabriu os
caminhos e fez surgir, em Carlos, o desejo de ir mais além ....
____________________
BIBLIOGRAPHIE
1) Cottet,
S., - "O passe na entrada" in Ágalma - Boletim da EBP-RJ
nº7.
2) Ibidem,
pag. 13.
3) Freud,
S., "Aus den Anfängen der Psycoanalysis", Imago Pub. London,
1950, pag. 185.
4) Lacan,
J., - "Le Séminaire XI - Les quatre concepts fondamentaux de
la psychanalyse", Seuil, Paris, 1973, pag. 28.
5) Nota
(1): Erwecken pode significar tanto "despertar" quanto "ressuscitar".
No sentido figurativo é usado como "provocar".
6) Nota
(2): Lembro-lhes aqui que Unlust é um dos nomes freudianos para
gozo.
7) Freud,
S., - Op. cit. pag. 188.
8) Rennó
Lima, C. - "Uma brecha no fantasma" in Opção Lacaniana,
nº11, pags. 55-59.
9) Freud,
S., - Op. cit. pag. 186.
10 ) Lacan,
J., - "Le Seminaire XI ...", op. cit. pag. 46.
11) Freud,
S., - Op. cit. pag. 186.
12) Ibidem.
13) Idem,
pag.188.
14) Miller,
J.A., "L'interpretation à l'envers", in Revue de La Cause
Freudienne nº 32, Paris, 1996, pag. 12
15) Lacan,
J. - "Le Séminaire VII - L'éthique de la psychanalyse".
Ed. du Seuil, Paris, 1986, pag. 207
16) Miller,
J.A., - "Silet", Curso do dia 23/11/94, inédito.
17) Miller,
J.A., - "L'interpretation a l'envers", op. cit., pag. 13.
18) Lacan,
J., - "Le Séminaire XI", op. cit. pag. 152.
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